A Meditação e sua Utilidade para a Autoeducação
A meditação é, hoje em dia, mais uma palavra da moda. Frequentemente se relaciona a um conjunto de práticas resgatadas para a cultura ocidental contemporânea, principalmente, das culturas orientais antigas.
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Por Hugo Matias
A meditação é, hoje em dia, mais uma palavra da moda. Frequentemente se relaciona a um conjunto de práticas resgatadas para a cultura ocidental contemporânea, principalmente, das culturas orientais antigas. Essas práticas ganham uma roupagem moderna com os adornos das ciências e das psicoterapias, e ganham também um lugar na cultura fitness. Dentre essas práticas, as mais populares estão associadas ao que é conhecido como mindfulness. Talvez elas tenham valor para o processo de autoeducação, mas o que pretendo avaliar aqui é o valor de outra tradição de práticas e exercícios mentais que chamamos meditação.
Esta outra tradição se aproxima mais de um conjunto de exercícios mentais pelos quais os antigos filósofos se engajaram na busca pela verdade ou por uma vida mais virtuosa. Eram praticados pelos antigos terapeutas, pelos estóicos, cínicos e epicuristas, cuja meditação variava entre temas como: os males futuros, a morte, ou o autoexame de consciência. Suas práticas eram marcadas pelo isolamento social e atenção máxima aos próprios pensamentos durante a investigação abstrata desses temas. Elas foram assimiladas pela cultura cristã, inclusive pela espiritualidade monástica, ganhou significação litúrgica e mística e se tornou uma etapa na busca por ascese espiritual (como em Boaventura e Tomás de Aquino, por exemplo).
Estes desenvolvimentos também se afastam do que interessa aqui. No entanto, certa acepção das práticas meditativas, que foi preservada pela cultura medieval cristã, interessa sim. Ela é representada, por exemplo, na proposta de Hugo de São Vítor, em seu Didascalion. Nesta obra, do século XII, o seu autor escreve a estudantes sobre o processo pelo qual se adquire sabedoria. Ele começa pelo ato de ler e prossegue no ato de refletir (ou meditar), até o ato de contemplar. Desse modo, o Mestre Hugo liga a meditação à leitura. É essa ligação que pretendo explorar e avaliar em sua utilidade.
Começo pelas definições instigantes do Didascalion: “a meditação é um pensar frequente com discernimento”. Tal discernimento não é padronizado por regras, pelo contrário, depende de certa liberdade para sua eficácia. Há quem queira aprender a meditar com o auxílio de algum tipo de receita, pela qual se estabelece que primeiro se faz isso, depois aquilo etc. O autor, no entanto, compara o “pensar frequente” ao correr deleitoso por uma campina aberta. O único controle exercido sobre este pensar é que ele seja orientado a um fim: eliminar ambiguidades e obscuridades, portanto, a purificação das ideias. Sendo assim, é fundamental ao bom resultado da meditação que aquele que medita saiba identificar a clareza das ideias, para notá-la naquilo que lhe vier à mente por meio da meditação.
Mais importante que tentar encontrar esse passo a passo é entender que, segundo o conselho do Mestre Hugo, a meditação compõe o que os medievais designavam por ócio (otium), isto é, o tempo que alguém dedicava ao aprimoramento de sua alma pelos estudos. Trata-se, portanto, do equivalente latino do conceito grego de skholé (de onde vem a palavra “escola”). Ambos os termos designam o tempo de fermentação do mosto das ideias, pelas quais produzem o vinho dos conceitos claros e distintos. O tempo para a meditação é o ingrediente fundamental. Assim como um bom vinho ganha sabor, qualidade e complexidade em barricas de carvalho, a mente que acolhe as ideias em fermentação pode arejar essas ideias, transmitir algumas de suas propriedades etc. Desse modo, além de oferecer tempo à meditação, conferir à mente, pelo treinamento, os atributos desejáveis é algo com que podemos enriquecer esse processo.
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Uma outra metáfora utilizada no Didascalion para se referir à meditação acrescenta detalhes importantes. O autor escreveu acerca das Escrituras que são “como uma floresta, cujas frases colhemos na leitura como se fossem frutos dulcíssimos e as ruminamos na reflexão”. A imagem da ruminação descrevia as práticas monásticas de meditação, em que os monges repetiam, como em balbucio, versículos da Bíblia durante a execução de trabalhos manuais ao longo de seus dias, com o fim de compreender melhor, de extrair compreensão desse modo de proceder. Isso significa que o tempo empregado na meditação, o ócio, não é necessariamente o tempo da inatividade. Além de ser um tempo de trabalho intelectual, pode ser fruído simultaneamente a outras atividades que não impliquem distração para a atividade mental. Aquelas atividades que podem ser realizadas sem consumo de maior atenção podem ser acompanhadas de meditação.
Esse sentido para a meditação não é uma novidade medieval ou monástica. Na verdade, a Bíblia registra com abundância esta atividade. O paralelismo bíblico em Sl 19.14a sugere a correspondência entre falar e meditar: “As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração”. Como se vê, o meditar do coração equivale à atividade de sussurrar palavras com o fim de que se lhes compreenda. Do mesmo modo, em Js 1.8a: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite”. As palavras traduzidas (adequadamente) por meditação, tanto em suas formas verbais como substantivas, indicam algum tipo de som, e quando este é o som de palavras (algo como um murmúrio ou sussurro), frequentemente designam um pensamento profundo, reflexivo, realizado de modo repetitivo e contínuo. Esse sussurro, essa ruminação das palavras da Escritura é algo para todo o tempo, e não somente para um período de tempo especialmente designado para isso. A expressão em Js 1.8 é semelhante àquela em Sl 1.2 (“medita de dia e de noite”), e aí vemos que se trata de uma atividade constante da qual depende a prosperidade do justo. No Sl 119, em particular, a meditação assume um caráter de estudo reflexivo especialmente ligado ao conteúdo da Torá (vv. 15, 23, 148), e tem como um de seus efeitos mais claros a melhor compreensão das Escrituras, como no v. 99: “Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito nos teus testemunhos”.
Com efeito, a literatura hebraica antiga, por suas características muito peculiares, entre as quais sua extrema concisão e a presença constante e massiva de sua imagética, tudo isso torna essa literatura frequentemente enigmática. Isso parece ser proposital, com o fim de que esta literatura funcione como uma espécie de convite à atividade meditativa. A meditação seria o tipo de leitura que a própria Escritura indica; na verdade, pressupõe.
A resposta a esse convite atravessou os séculos, como vimos. Esse mesmo procedimento também foi assimilado e praticado pelos leitores das primeiras igrejas reformadas, dos séculos XVI, XVII e XVIII, os quais legaram muitos escritos e ensinamentos sobre a prática e o proveito da meditação. Essa prática acabou inclusive incorporada aos símbolos de fé dessas igrejas, como no exemplo do Catecismo Maior de Westminster (pergunta 154). A meditação, tal como ensinada e praticada pelos puritanos, por exemplo, aproveita ao máximo todas as possibilidades e caminhos para o aprofundamento da espiritualidade. Eles distinguiam duas maneiras de meditar: a meditação ocasional, em que se aproveitava qualquer oportunidade, ao longo do dia, para depurar, pela reflexão, algum aspecto das leituras diárias, às vezes em meio às atividades diárias; também a meditação programada, de caráter deliberado, em momentos especialmente designados, com temas pré-definidos e natureza mais solene.
Pergunta 154 (CFW). Quais são os meios exteriores pelos quais Cristo nos comunica os benefícios de sua mediação?
Os meios exteriores e ordinários, pelos quais Cristo comunica à sua Igreja os benefícios de sua mediação, são todas as suas ordenanças, especialmente a Palavra, os Sacramentos e a Oração; todas essas ordenanças se tornam eficazes aos eleitos em sua salvação.
Mt 28.19-20; At 2.42, 46; 1Tm 4.16; 1Co 1.21; Ef 5.19, 20; Ef 6.17, 18.
Segundo Edmund Calamy (1600-1666), além de exercitar as capacidades do entendimento, a meditação também deveria modelar afeições santas e um coração piedoso. Para os puritanos, a meditação se realiza também por meio da repetição mental de passagens bíblicas, mas há outras tradições entre eles, as quais incluem muitas variações temáticas: alguns meditavam sobre o céu e a vida porvir, sobre os sacramentos e outros meio de graça, sobre eventos da vida e sua ligação com a Providência, sobre eventos da vida de Cristo etc. Este era um exercício também para a imaginação. De todo modo, a meditação em todos esses temas era, com muita frequência, descrita como necessariamente regulada e limitada em seu escopo pelas balizas da Escrituras. O meditar não poderia oferecer oportunidade à divagação, tampouco ocasião para a insensatez.
O proveito da leitura, por meio da meditação, era mesmo o ponto alto da prática puritana da meditação. Para Thomas Watson (1620-1686), a meditação produz, através da leitura, ferramentas, e por meio dela, o crente se torna capaz de reter as sublimes verdades bíblicas apesar da resistência dos corações duros e da fugacidade da memória. Segundo Richard Baxter (1615-1691), ler sem meditar é como comer carne crua, ao passo que a meditação seria como digerir e, embora seja possível comer em demasia, é impossível digerir em demasia, pelo que aponta a saúde espiritual proveniente da meditação.
Os puritanos desenvolveram o hábito da meditação em todos os seus aspectos e foram grandes mestres no que diz respeito aos aspectos práticos disso, que era para eles uma disciplina mental, mas acima de tudo, uma disciplina espiritual. Eles construíram diversas recomendações sobre frequência, horário e duração da meditação, aspectos do cuidado com o ambiente, da preparação do corpo e da mente, sobre como aproveitar certas circunstâncias para a meditação, de modo que a motivação, atenção e memória fossem adequadamente mobilizadas nesses exercícios.
De fato, a meditação pode abrir ao crente um baú de ricos tesouros espirituais da fé cristã. Contudo, a meditação também amplifica uma vasta gama de esforços mentais que constituem todo o processo de autoeducação. A disciplina intelectual e afetiva obtida com a meditação frutifica e irradia benefícios do seu cerne em uma vida de sabedoria e piedade para os seus proveitos em todas as dimensões da auto educação mediada pelo estudo de textos (filosóficos, literários, históricos etc.). Resumo agora o que até aqui tivemos de nossa reflexão: (a) a meditação – da qual falamos aqui – consiste no pensar detido, contínuo e reflexivo sobre algum texto; (b) esse pensar não é regulado por quaisquer métodos específicos, mas caracterizado por certa liberdade e vagar, pelo que se obtém grande profusão de ideias; (c) tais ideias, por sua vez, precisam ser julgadas com método, em conjunto, purificadas de imprecisões, ambiguidades, superficialidade, revestidas de clareza, precisão e especificidade. À semelhança dos antigos mestres puritanos, cujas orientações ainda interessam hoje, não obstante as transformações pelas quais o mundo já passou desde a sua época, sugiro aqui, algumas recomendações finais acerca de como enfrentar alguns obstáculos comuns que muitas vezes se impõem contra as tentativas de praticar a meditação:
(a) não sei como meditar – o despreparo intelectual para a prática da meditação é um problema real, mas ele não atrapalha a meditação propriamente dita, senão os seus frutos. Como já vimos, a meditação não consiste em nada mais que o simples pensar contínuo e repetitivo sobre um texto/tema específico. O preparo intelectual anterior serve, em primeiro lugar, à seleção adequada de material em que meditar. Essa deficiência pode ser suprida pelo auxílio de pessoas mais experientes e sábias, com boas sugestões. Em segundo lugar, o preparo intelectual serve também ao momento em que as ideias são julgadas. Para isso, outros remédios: i. pode-se registrar o resultado preliminar das meditações para julgamento posterior mais criterioso do material escrito. Pode-se aplicar a esse material escrito os mesmos critérios que se aprende pela leitura do trabalho de bons pensadores. O treinamento intelectual e metódico, cedo ou tarde, transformará positivamente os hábitos de meditação. Também se pode ii. recolher esses resultados preliminares da meditação para compartilhá-los em conversas com outras pessoas mais experientes, em momentos e situações propícias. Muitas vezes, faltam assuntos piedosos e proveitosos entre pessoas que buscam crescimento espiritual, e isso leva as pessoas a compartilhar trivialidades. Certamente, o adequado registro mental dos resultados preliminares da meditação pode preencher, de maneira muito oportuna, uma lacuna como esta.
(b) Não consigo me manter focado na meditação – vivemos em um mundo cheio de distrações e tanto é assim que a nossa mente se habitua a pular de galho em galho como um macaquinho numa vasta floresta de estimulações. As condições que cada um experimenta são tão diversas, as histórias pessoais são tão dessemelhantes, que os remédios para essa dificuldade também são muito variados. Há pessoas para quem a simples limpeza e organização do ambiente já trará efeitos drásticos. Coisas como desligar eletrônicos, fechar a janela ou porta do quarto, ordenar os objetos da mesa de trabalho, colocar as crianças para dormir ou levantar mais cedo. Outras pessoas precisarão organizar e limpar o ambiente mental. As atividades do dia seguinte precisam ser domadas, o que pode ser feito com o seu registro em uma agenda. As preocupações do trabalho precisam ser esquecidas pelo efeito de uns minutinhos de relaxamento antes do início da prática de meditação. Há também aqueles para quem tem efeito organizador o engajamento em algum trabalho manual, tão rotineiro e simples a ponto de ter sido automatizado, algo como as atividades domésticas (cozinhar, limpar, consertar algo etc.). Certamente, alguns precisarão se servir de uma combinação dessas estratégias. Um primeiro passo incontornável, para aqueles que ainda não se acostumaram a isto, é habituar-se ao silêncio exterior e interior. O silenciar é também necessário para que se possa ouvir os próprios pensamentos.
(c) já tentei, mas não consegui nenhum resultado – uma vez que as dificuldades relacionadas à meditação podem ser muitas, ao conjunto delas se acrescenta aquilo que deveria ser percebido como falta de persistência ou perseverança. Esse problema afeta, principalmente, de duas maneiras: i. algumas pessoas fazem expectativas irreais sobre o tempo de resultados da prática da meditação. Como demonstrado, um elemento fundamental da meditação é o tempo, e não se pode suprimi-lo na busca por seus resultados. Se alguém se depara com a ideia de que a meditação não produziu os resultados que deveria, é preciso se perguntar se o devido tempo para isso foi observado. Uma vez que as suas expectativas tenham sido ajustadas, é possível que a pessoa experimente desânimo, caso não enxergue em si disposição para a espera necessária. Neste caso, um remédio possível é renovar a percepção dos benefícios da meditação, de modo a obter a estrutura motivacional adequada para a empreitada de autoeducação. A segunda maneira como esse problema afeta ocorre quando ii. não se percebem ou se desprezam os resultados de fato obtidos. Acontece que os resultados da meditação são tão modestos quanto são incipientes os esforços empreendidos. Um texto, principalmente do tipo mais complexo, se abre aos poucos, em vários níveis. Assim como é necessária uma calibragem das expectativas quanto ao tempo dos resultados da meditação, também o é para a sua natureza. Novamente, é preciso renovar a percepção dos benefícios de uma prática de meditação plenamente desenvolvida e celebrar cada pequeno passo em direção a isso.
(d) não tenho tempo para meditar – este é um obstáculo insuperável. Sem tempo, é impossível a meditação. Neste caso, resta apenas lamentar, pois o tipo de crescimento que se obtém da meditação não tem substituto. Alguém que não medita pode até aprender as coisas que a meditação ensina, registradas por outras pessoas que fizeram o percurso, mas os benefícios do percurso lhe serão inalcançáveis. É como alguém sedento que recebe água das mãos de outrem: esta pessoa depende daquelas para matar a sua sede, e não poderá atestar a qualidade da água que bebeu até que vá, por sua própria conta, obter água da fonte. Os seus membros não serão fortalecidos pela caminhada nem os seus sentidos treinados pelas exigências da busca. A esses, portanto, recomendo que subtraiam tempo, em suas vidas, àquilo que é banal, e o disponham àquilo que é excelente.
Fonte: Hugo Matias - Pai Educador
Revisão: Emerson Almeida
Fonte da Imagem: Canva Educalar
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