A Questão da Socialização para Crianças Educadas em Casa
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Por Hugo Matias e Taiane da Silva Conceição
Em países de língua inglesa, a crítica comum à prática de homeschooling é conhecida como “the S question”. A socialização de homeschoolers (crianças educadas em ambiente doméstico) tem sido questão para debates acalorados entre acadêmicos, mas também entre pais e educadores, defensores e críticos da educação doméstica. No entanto, nem sempre a discussão tem sido esclarecedora, pois mesmo pais educadores muitas vezes precisam lidar com dúvidas relativas ao tema. O que é notório é que os significados e as perspectivas pelas quais se avalia a questão são muito diversas, o que leva, geralmente, a resultados confusos. Seriam, portanto, de grande utilidade e importância, esclarecimentos que permitissem uma avaliação mais informada da questão da socialização na prática de educar crianças em casa (homeschooling).
No Recurso Extraordinário no 888.815, dirigido ao Supremo Tribunal Federal em 2015 (caso originado pelo indeferimento de um mandado de segurança que buscava o direito de não frequentar a escola, na comarca de Canela/RS), uma família educadora menciona a socialização como uma razão para sua escolha pelo ensino domiciliar: o fato de que a socialização provida pela escola oferece riscos à formação moral de sua criança. Já no acórdão da decisão, no voto apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes (em setembro de 2018), em sua síntese está dito que, entre as finalidades e objetivos do ensino, prevista pela Constituição Federal, está “a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária” (CF/88, art. 227). Naquele voto, se fala em pluralidade de ideias, em convivência comunitária e plural, concretizar a socialização, avaliá-la. No argumento de uma (a criança), a socialização justifica a prática de homeschooling; na do outro (o ministro), a socialização põe a prática de homeschooling sob suspeição. Isso parece ser algo de grande importância, ponto fulcral da discussão sobre a autorização judicial para a prática de homeschooling.
Nessa discussão anteriormente mencionada, e como é comum em muitos outros contextos e nas falas de quase todos que pretendem tratar desse tema da relação entre socialização e homeschooling, é difícil discernir o que se pretende dizer com “socialização”. No senso comum, os sentidos são diversos: desde a ideia de partilha de bens e recursos materiais e simbólicos, até a inserção e produção de pertença de indivíduos em grupos de diferentes tamanhos e naturezas. No âmbito do senso comum, a socialização de uma criança significa apenas que ela esteja na companhia de outras crianças de sua idade e que esteja sendo exposta, de algum modo, a ideias diferentes daquelas a que tem acesso em seu próprio ambiente doméstico. É esse o sentido, por exemplo, em um artigo publicado pelo portal UOL, em que a autora, entre as críticas ao homeschooling, coloca a “falta de socialização”. Nesse artigo, a falta de socialização, inicialmente “falta de convívio social com outros alunos da mesma idade”, rapidamente evolui para uma situação em que as crianças “isoladas, deixam o convívio com a sociedade”. Embora a autora alegue ter consultado especialistas, estas são ideias simplórias, que não fazem justiça a um conceito com longa tradição em estudos psicológicos, sociológicos e antropológicos, isto é, o de socialização.
A socialização pode ser definida de muitas maneiras e em várias perspectivas diferentes. Em uma resenha da diversidade de sentidos desse conceito, Claude Dubar (2005) nos apresenta abordagens psicológicas, antropológicas e sociológicas, todas elas com implicações políticas instigantes. Assim, ele nos desvela a complexidade do fenômeno e como, de um modo ou de outro, se relaciona à construção social da identidade. Vejamos cada uma delas.
A abordagem de Jean Piaget, eminentemente psicológica, apresenta a socialização como algo que vem a reboque do desenvolvimento mental infantil. Podemos dizer que consiste em uma de suas dimensões. As estruturas mentais com que estamos equipados ao nascer não envolvem representações do próprio eu ou do outro. Na interação com o mundo, essas estruturas mentais são desafiadas e, em busca ativa por adaptação, o organismo transforma, pouco a pouco, seus próprios processos cognitivos e afetivos. Eles se tornam mais complexos. Assim, em diferentes estágios do desenvolvimento psicológico, as estruturas mentais de que dispomos condicionam formas também variadas de relacionamento social, ao mesmo tempo em que as estruturas sociais ao redor da criança demandam estruturas mentais mais aptas. A socialização corresponde, portanto, ao processo em que as funções cognitivas e afetivas evoluem de estágios marcados por um egocentrismo inconsciente de si até estágios em que os sujeitos são capazes de coordenar, de modo complexo e eficaz, sua própria ação à ação de outros, tanto em planos práticos como abstratos. Esse processo ocorre porque cada indivíduo está exposto aos desafios mentais e práticos que o meio (social, principalmente) lhe apresenta. Tanto família como escola cumprem seu papel desafiando, em nível ótimo, as estruturas psicológicas dos indivíduos que acolhem, induzindo assim sua evolução. No entanto, outras instituições comportam tipos de relações e situações sociais que desempenham papel análogo.
A abordagem de Piaget é semelhante, em alguns pontos, àquela do sociólogo Émile Durkheim. Este também entendia a ocorrência da socialização em um registro psicossocial. No entanto, ele enfatizou os processos sociais, pois enxergava neles a força que impõe a transformação mental dos indivíduos ao longo de sua vida. Por essa razão, Durkheim via a socialização como o processo pelo qual fatos sociais, externos, genéricos e coercitivos alcançam os indivíduos. Não foi difícil para ele identificar, portanto, a socialização à simples educação moral dos indivíduos em uma sociedade, isto é, a transmissão de valores e regras de conduta as quais os membros de uma sociedade devem aquiescer. Em Durkheim, não vemos o papel ativo do indivíduo que Piaget lhe atribui: o sujeito, de modo algo passivo, é socializado. E é compatível com a abordagem durkheimiana da socialização a sua concepção de educação escolar. Para ele, a função da escola seria a inculcação dos valores sociais vigentes, e, por isso, assume uma função social proeminente. Aqui é preciso mencionar o fato de que Durkheim defendeu um programa público de educação moral para a França de seu tempo, cujo objetivo fosse a inculcação dos valores republicanos, a preparação dos jovens para integrarem uma sociedade política ampla. Isto certamente denuncia o seu comprometimento com a consolidação da ainda frágil Terceira República na França do início do século XX.
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Piaget criticou esta posição não porque se opunha à educação moral republicana, mas simplesmente argumentando que a interação entre indivíduo e sociedade é mais complexa que isso, assim como a interação entre a criança e quaisquer instituições sociais, tais como escola e família. Não é somente que a mera inculcação não seja desejável, é que ela também não é possível. O melhor que ambas (família e escola) poderiam oferecer é o fomento a um ambiente social complexo o bastante para desafiar, em nível ótimo, as estruturas mentais infantis e mobilizar o seu desenvolvimento.
Esse tema do debate entre Piaget e Durkheim foi posteriormente expandido por Annick Percheron, também socióloga, que aproveita as indicações piagetianas, em grande medida, e as confronta às posições durkheimianas. Segundo ela, no processo de socialização, o que o sujeito adquire seriam códigos simbólicos, os quais configuram uma representação abrangente de mundo. Isso ocorre no interior de negociações e renegociações permanentes entre sujeito e agentes socializadores os mais diversos. Por esse motivo, nenhuma instituição reproduz qualquer sistema de representações nas mentes de seus participantes. O que ocorre é que sistemas de representação de mundos especializados (como o mundo físico, biológico, político etc.) são oferecidos pelas instituições (como família e escola) e são apropriados pelos sujeitos nos termos de sua própria experiência concreta, sua história pessoal, suas aspirações e necessidades particulares, e assim por diante. Por essa razão, o processo opera em nível latente, isto é, não é intencional e conscientemente conduzido a certos fins. De todo modo, ainda segundo Percheron, são de fundamental importância os padrões de interação linguística em que os sujeitos estão imersos, em qualquer instituição, para a formação de suas representações de mundos e das condições pelas quais se vinculam a grupos. Esses são processos pelos quais também constroem os termos de seu pertencimento aos mesmos grupos e, com isso, sedimentam identidade para si.
Uma outra abordagem da socialização pode ser encontrada na antropologia culturalista, cuja tese fundamental consiste em que a personalidade individual é sempre produto da cultura de seu entorno. Essa ideia era defendida por antropólogos como Ruth Benedict, Abram Kardiner, Ralf Linton. Segundo eles, a plasticidade da vida mental e do comportamento humano está sujeita à poderosa influência da cultura, ou seja, o conjunto de todas as instituições de uma dada sociedade. Por sua vez, as instituições consistem em padrões formalizados de conduta, constantemente repetidos e que acabam por estruturar a vida de cada um dos indivíduos sob seu alcance. Desse modo, a socialização é por eles entendida como a progressiva aquisição, pelo sujeito, dos traços gerais de culturas de seus grupos de pertencimento. Nesse movimento, são mais impactantes as práticas de treinamento a que estão submetidos durante a primeira infância. É importante notar que eles viam as sociedades ocidentais modernas (de que fazemos parte) como fragmentadas em diversas subculturas, unidas por traços gerais.
Uma outra tentativa de dar sentido às múltiplas operações do mundo social pelas quais as personalidades são formadas vem da teoria social de Talcott Parsons, de forte viés funcionalista. Nessa teoria, ele aponta quatro funções que sustentam o sistema social e que o processo de socialização deve operar: estabilidade normativa, integração, busca de objetivos e adaptação. O que quer que a socialização realize, é na direção dessas quatro funções que ela opera. Sob grande influência de Sigmund Freud, Parsons enxerga na família a instituição primeira e fundamental onde ocorrem as interações constitutivas do sistema social, onde a coletividade familiar é interiorizada em sua qualidade de protótipo da sociedade. A instituição escolar apenas posteriormente se encarregará de ampliar as conquistas feitas em estágios anteriores, contudo, juntamente com a família e outras instituições (grupos de pares, p. ex.). A partir de então, o sistema social interiorizado ganhará alcance universal e mais abstrato, e o sujeito será exposto a novos fins sociais que deverá perseguir. Com isso, são também apresentados aos sujeitos novos papéis sociais e novas regras de interação, as quais operam sobre o lastro das conquistas anteriores.
As duas abordagens anteriores sofreram fortes críticas porque, aparentemente, enfatizavam em excesso a importância das primeiras experiências infantis e dos efeitos da cultura sobre a personalidade dos indivíduos. Os resultados de pesquisas empíricas posteriores não confirmaram as previsões teóricas feitas nessas abordagens. Além disso, elas eram filosoficamente muito ambiciosas, pois sugeriam universalidades difíceis de conciliar com a diversidade da experiência humana. Outras noções importantes também pareciam irremediavelmente prejudicadas, entre elas a ideia de algum nível de liberdade de ação.
Outro sociólogo tentou elaborar um conceito de socialização que incorporasse essas críticas. Trata-se de Pierre Bourdieu, com a ideia segundo a qual socialização consiste na incorporação de um habitus. Esse conceito se refere a disposições mentais e comportamentais organizadas em estruturas disponíveis à apropriação pelos sujeitos. Estes, uma vez que incorporassem certo habitus, produziriam a partir disso as representações, modos de sentir, pensar e agir, necessários em sua vida cotidiana. Não obstante sua forte tendência à reprodução da realidade social do grupo, esta ideia de socialização carrega um elemento de mudança social marcante. As disposições que compõem o habitus não se resumem ao modo de ser de um grupo, tal como a família ou a subcultura a que pertence. Antes, compõem uma trajetória social com tendências que se revelam na dimensão temporal estendida da existência do grupo de referência. E na vida de uma pessoa, essa tendência será tão indeterminada e aberta quanto for diversa a sua participação sucessiva e simultânea em muitas realidades sociais, sejam grupos ou instituições. Por essa razão, permanece importante a vinculação à instituição familiar (embora relativizada), mas a importância da escola, que ainda pode ser impactante, acaba diluída entre outras instituições ao longo da trajetória pessoal.
Há mais uma abordagem que parte do pressuposto de um mundo social fragmentário. Na verdade, a abordagem construcionista (é dela que passamos a tratar) aprofunda esse pressuposto, localizando no sujeito os efeitos de uma dupla exigência: ao mesmo tempo apropriar-se dos códigos simbólicos socialmente disponíveis, e representar a si mesmo nesse mundo. Essa abordagem desenvolve a tese de que o processo de individuação somente é possível em sua dialética com o processo de socialização. Por sua vez, a socialização compreende um amplo conjunto de mediações diversas, simbólicas, práticas, comunicacionais, pelas quais o duplo registro de exigências, de fato, acossam o sujeito na produção de sua identidade pessoal. Esta é uma longa tradição de pensamento que inclui G. W. F. Hegel, Max Weber, G. H. Mead, Jürgen Habermas, Peter Berger e Thomas Luckmann. Estes dois últimos, em trabalho conjunto, defendem uma distinção entre socialização primária e secundária. A primeira se caracterizaria como o movimento mais básico de apropriação da realidade social e, ao mesmo tempo, da primeira forma de assunção subjetiva a esse mundo. A segunda, sobre o fundamento da primeira, a apropriação prática e simbólica de submundos institucionais especializados. É aqui que parece ter lugar a instituição escolar. Nem sempre há continuidade entre os dois momentos e a socialização secundária pode até promover rupturas com o que foi anteriormente construído, inclusive com as instituições mais importantes da socialização primária (marcadamente, a família). Mas essas são situações que somente ocorrem sob contingências específicas e incomuns. De todo modo, para esses autores, a socialização permanece sempre um processo inacabado e incompleto, portanto, fluido.
O que se pode recuperar de toda esta discussão? Em primeiro lugar, que há uma grande diversidade de maneiras de se pensar a socialização, mas que em todas elas, a socialização é um processo inevitável e incontornável. Em segundo, cada uma dessas maneiras tem consequências para o papel atribuído às diversas instituições sociais que operam esse processo, tais como família e escola. Em terceiro, todas as abordagens enxergam o papel importantíssimo da família como instância socializadora fundamental. As preocupações com a eventual “não-socialização” das crianças por efeito de sua não-escolarização ou desescolarização são infundadas e decorrem de grande incompreensão acerca desse processo e do papel que a instituição escolar desempenha. A crítica à opção por homeschooling que se faz com base na eventual incompletude da socialização sem o recurso à instituição escolar, ou ao vício de processo decorrente desta opção, ainda pode ser avaliada e isso se fará pelo recurso ao debate acadêmico (de onde surgem as críticas mais relevantes e impactantes).
Na verdade, há muitas críticas no Brasil, em âmbito acadêmico, à prática do homeschooling. Poucas delas tocam diretamente o tema da socialização. No ano de 2017, a revista Pro-Posições, periódico científico editado pela Faculdade de Educação da Unicamp, publicou um dossiê sobre educação doméstica, em que se debate, principalmente, a sua dimensão jurídica. Em editorial, o prof. Sílvio Gallo relata a dificuldade de edição deste número. Muitos pareceristas consultados se recusaram a avaliar os artigos submetidos “devido ao tema polêmico” (Gallo, 2017, p. 13), sem mais detalhes discutidos nesse editorial. Isso é no mínimo curioso, já que o caráter polêmico de um tema frequentemente atrai o interesse dos acadêmicos. De todo modo, isso mostra quão difícil é tratar esse tema de modo mais crítico (em alguma medida, a academia no Brasil o evita!).
De todo modo, no referido dossiê, há menções breves e não sistemáticas à socialização entre as críticas ao homeschooling. Em primeiro lugar, Vasconcelos (2017) aponta a insuficiência da socialização como uma acusação recorrente à prática de educação doméstica. Bosetti e Van Pelt (2017) detalham melhor ao menos um dos significados dessa crítica, a saber, os efeitos dessa prática sobre a formação para a cidadania dos educandos, pois a educação doméstica, segundo os seus críticos, perpetuaria movimentos de contracultura, promovendo pensamento antidemocrático, elitista, reacionarismo e divisionismo. Isto seria efeito da limitação indevida das crianças com as diferenças inerentes a uma sociedade plural. O interessante é que no artigo de Ribeiro e Palhares (2017), sobre a educação doméstica em Portugal, embora em tom nitidamente desfavorável ao homeschooling, se reconhece justamente que o movimento de pais educadores é plural, tanto em sua base ideológica como nos arranjos organizacionais que estruturam suas práticas educativas. Além disso, apontam ser um traço forte e característico de seus achados o fato de que essa pluralidade de práticas decorre de um compromisso claro com as idiossincrasias dos educandos e das situações educativas. Justamente o pluralismo parece estar no DNA do homeschooling por força da própria natureza dessa prática. Para Ribeiro e Palhares (2017), essa modalidade de ensino questiona as práticas convencionais da escola.
Quem dirige uma crítica mais direta ao homeschooling pelo recurso à ideia de socialização é Cury (2017). Em seu artigo, ele pretende realizar um estudo compreensivo da racionalidade filosófico-jurídica por trás das reivindicações do movimento de educação doméstica no Brasil, e conclui posicionando-se contra o movimento. Para isso, aduz críticas relacionadas à socialização. Nisso, é claro, o seu argumento extrapola o escopo jurídico de sua aparente intenção original. Seu argumento parece ser o de que a educação doméstica falha por provimento insuficiente de condições para adequada socialização, com efeitos deletérios para a formação cidadã das crianças. Assim, ecoa as críticas já mencionadas como muito comuns por Vasconcelos (2017) e por Bosetti e Van Pelt (2017). Por meio da reconstrução dos argumentos de Cury (2017) é possível acessar essas críticas em mais detalhes.
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Em primeiro lugar, Cury (2017) reconhece que a prática de ensino doméstico era comum e, inclusive, endossada pelo ordenamento jurídico brasileiro até pouco tempo atrás. Mas isto teve de mudar por efeito de uma série de contingências históricas que condicionaram a insuficiência da educação doméstica. Segundo ele:
[...] Desde o final do século XIX, já se apontava a limitação dessa educação diante da complexificação da sociedade. Novas funções, novas instituições próprias da urbanização, estabelecem, pois, uma dialética entre a socialização familiar e a socialização escolar (p. 116).
Temos, então, algumas premissas importantes em seu argumento: (1) as limitações da capacidade de provimento educacional do ensino doméstico são medidas pelas exigências de uma sociedade complexa, urbana; (2) essa mesma sociedade produziu novas instituições, entre elas a escola, para atender às novas exigências que criou. Precisamos nos perguntar sobre quais seriam as novas exigências. É fácil compreender, por exemplo, exigências advindas da urbanização como sendo aquelas relacionadas à qualificação da força de trabalho, pela oferta de formação preparatória, técnica e científica, talvez mais difícil de oferecer no âmbito da educação domiciliar. Isso, de fato, era uma preocupação que podemos identificar nas políticas educacionais de fins do século XIX e início do século XX. Contudo, não parece haver justificativa ainda para o veto à escolha individual por esta prática, pois (1) nem todos precisam desempenhar funções de trabalho que necessitem formação técnico-científica, e (2) não é impossível que se ofereça mesmo esse tipo de formação em âmbito doméstico. Prova disso é que essa formação se oferecia, e ainda hoje se oferece, à distância e em institutos separados de formação profissional.
Outra nova exigência que se pode discernir no período aludido, também ligada à urbanização e, principalmente, à modernização da sociedade em fins do século XIX no Brasil, é a transição para o republicanismo. Certamente, as escolas desempenharam papel importante na transmissão de novos valores ideológicos relacionados a essa importante mudança social. Aliás, esta foi uma mediação importante para a formação de uma sociedade urbana e plural no período aludido. Contudo, a República, mesmo trazendo em seu bojo o ideal de provimento estatal de educação e formação cidadã, reconheceu desde o início a possibilidade de educação domiciliar como adequada em princípio, para o cumprimento das novas exigências de uma nova sociedade.
Na verdade, a alegação apresentada por Cury (2017) é de que a educação escolar, ao contrário do ensino doméstico, estaria especialmente adaptada a fomentar a superação do “egocentrismo próprio da infância” (p. 116). Esta linguagem remete, provavelmente, à teoria piagetiana do desenvolvimento infantil. De fato, em outro artigo (Cury, 2006), este autor é mais explícito em suas referências à teoria piagetiana do desenvolvimento moral, chegando a citar o conhecido livro de Jean Piaget, “O juízo moral da criança”, na apresentação de suas ideias. Por esta razão, talvez se possa imaginar que para Cury (2006, 2017), as novas exigências de uma sociedade complexa e urbana para a educação infantil incidem em um plano mais estrutural do desenvolvimento infantil. Isto significa que não se trata apenas de conhecimentos a serem assimilados pelos educandos, mas a competência para operações mentais que impliquem esta superação do egocentrismo, principalmente numa dimensão moral desse desenvolvimento. Se é mesmo esta a questão, avaliemo-la:
É preciso esclarecer que o uso do conceito de egocentrismo, na teoria piagetiana, tem um sentido bem específico: trata-se de uma condição em que a criança, na realização das mais diversas operações mentais, estaria presa em seu próprio ponto de vista e raciocina ou sente apenas sob essa condição. Em um plano mais claramente cognitivo, por exemplo, a criança egocêntrica tem dificuldade de representar o espaço físico ao qual ela não tenha acesso visual direto, e não consegue representá-lo senão de seu próprio ângulo de visão. Uma criança que, ao contrário, supera esse tipo de egocentrismo, é capaz de imaginar o espaço tal como visto por outra pessoa. No plano afetivo, o egocentrismo infantil lhe dificultaria, para a criança, um sentimento de empatia. Seria difícil para ela colocar-se no lugar do outro, uma vez que isso exigiria sair de seu próprio ponto de vista. Essa operação, que exige raciocínio formal, abstrato e hipotético, é fundamental para noções morais desenvolvidas como a de justiça. Ninguém pode operar com o conceito de justiça sem ter superado o egocentrismo, no sentido piagetiano.
Em um artigo importante sobre o tema, Piaget (1930/2003) discute a educação moral em termos de seus objetivos, procedimentos e domínios. Embora ele se refira principalmente à educação escolar, é preciso lembrar que não havia, em 1930, polêmica entre educação escolar e doméstica, em sua discussão. Seria anacrônico ler assim a sua obra. De todo modo, é interessante notar que o foco de Piaget (1930/2003) estava sobre fins e procedimentos. Não seria possível pensar que observados os fins e procedimentos, o ambiente institucional não seria de tanta relevância? Quanto aos fins, ele apenas os catalogava e discutia pelo cotejo com os dados de pesquisa empírica da época. Não obstante, Piaget (1930/2003) endossava a busca pela formação de uma mentalidade autônoma, em oposição à heterônoma. Quanto aos procedimentos, parecia estar convencido do que ele chamava de técnicas ativas, isto é, aquele tipo de educação em que a criança é protagonista de sua própria formação e tem como suporte um ambiente favorável e estimulante. Nesse caso, esse ambiente deveria ser principalmente marcado pela experiência do respeito mútuo, inclusive plasmado nas regras práticas de interação em que a criança estivesse inserida, tanto entre ela e outras crianças de sua faixa etária, quanto entre ela e adultos. Trata-se de um tipo de interação social que ele chamava “relação de cooperação”.
É preciso entender em que consiste essa relação de cooperação. Não se trata, necessariamente, de uma relação em que as pessoas solidariamente buscam o mesmo fim. É algo mais simples, de pessoas interagindo, de maneira estruturada, em que tratam as outras como iguais e concebem suas relações em termos de reciprocidade. Piaget (1930/2003) citou três exemplos muito eloquentes do tipo de situação caracterizado dessa forma: (a) jogos com regras, (b) debates críticos, e (c) organização de self-government. Este último, um exemplo particularmente intrigante. Tais organizações constituem um ambiente institucional adequado para práticas democráticas, promoção da autonomia e de vários tipos de virtudes morais e intelectuais, inclusive virtudes cívicas, e podem ser encontradas, muito facilmente, em ambiente extra-escolar (alguns exemplos são os grêmios, os clubes, o escotismo etc.). Por fim, é interessantíssimo o fato de que Piaget (1930/2003) citou alguns exemplos curiosos de lugares onde organizações de self-government se desenvolveram e, em determinado argumento a fortiori, propõe que como elas foram possíveis nesses lugares (ele cita uma república de crianças refugiadas!) seriam possíveis ainda em outros. Seria difícil negar às comunidades de homeschoolers capacidade para promover isso. Quanto aos jogos com regras e os debates críticos, não há razão para supor que eles seriam impróprios ao contexto da educação domiciliar. Na verdade, são comuns os esforços dos pais educadores, assim como das comunidades de pais homeschoolers, pela promoção de atividades que visem à promoção da autonomia, as quais incluem os exemplos aqui discutidos.
Voltando às questões anteriores, teríamos algumas respostas. Talvez Cury (2017) imagine que entre as limitações da prática de homeschooling estejam os defeitos dos fins buscados, isto é, a formação de mentalidades heterônomas. Contudo, entre todas as abordagens e, em meio à diversidade de ideologias que orientam homeschoolers, é sempre notória a sua busca vigorosa pela formação de mentalidade autônoma, desde as propostas de Charlotte Mason e John Holt até as propostas de Educação Clássica. Talvez uma questão mais difícil se refira aos procedimentos. No entanto, como acabamos de ver acima, nos termos em que Piaget (1930/2003) coloca a questão dos procedimentos, em tese, não há limitação que se vislumbre. Mesmo que limitássemos os resultados pretendidos ao uso estrito das técnicas recomendadas, algo que o próprio Piaget (1930/2003) não faz, as técnicas ativas não são inacessíveis aos adeptos do homeschooling. Na verdade, são muito comuns a esse movimento. É assim que Ribeiro e Palhares (2017) comparam educação escolar e doméstica:
As diferenças organizacionais entre as várias racionalidades que subjazem aos sujeitos investigados e à escola convencional são muito consistentes. O ensino doméstico diferencia-se na pluriformidade curricular; na flexibilidade de horário e de programação; nas metodologias dirigidas para o ensino individual, ou no máximo em pequenos grupos; na pluralidade de estilos de aprendizagem; no ensino ao ritmo do aluno; no controlo centrípeto; na maternização do ensino; na configuração variável e adaptável dos espaços; na diversidade elevada de meios; e nos recursos de aprendizagem e avaliação diária. Presta-se muita atenção às idiossincrasias dos alunos, ao constante nutrimento do desenvolvimento físico, cognitivo e espiritual e à constante elevação das necessidades da criança acima das demais prioridades da vida. Por isso, o ensino doméstico questiona a escola sobre o modo de funcionamento do modelo de organização convencional (p. 79-80).
Por outro lado, o argumento de Cury (2017) também nos convida a uma avaliação da escola como ambiente privilegiado para certo tipo de socialização, um tipo que, na linguagem piagetiana, estamos tratando como educação moral. Quanto a isso, um estudo interessante merece ser citado, inclusive pelo seu viés piagetiano, mas também pelo fato de que se trata do relato de uma pesquisa empírica realizada no Brasil, para investigar especificamente esta questão, a da competência do ambiente escolar em promover os procedimentos mencionados por Piaget (1930/2003). Trata-se da pesquisa de Araújo (2003), em que parte de pressupostos semelhantes aos de Cury (2017) quanto à especial adequação da escola. Em suas palavras:
[...] a escola... [é] um local para a criança com sujeitos da mesma faixa etária, com que possa manter relações em que não estejam presentes prestígio e/ou autoridade, condição essencial para a cooperação (p. 106).
O autor, assim como Cury (2017), não chega a argumentar, sob base alguma, seja empírica ou teórica, em favor dessa afirmação. Apenas pressupõe a anuência de seus interlocutores. Mesmo assim, logo em seguida, precisa enfrentar uma série de objeções óbvias: (a) na escola, a criança também se relaciona com outras de faixas etárias diferentes e com adultos, (b) também há ali relações de privilégio e autoridade, as quais não podem desaparecer, (c) mesmo entre crianças da mesma faixa etárias, o respeito mútuo não é algo necessário, muito pelo contrário. Além disso, o próprio autor admite que entre as raras experiências em que se tentou, sistematicamente, recriar o ambiente escolar de modo a que ele, de fato, funcionasse segundo a proposta de inspiração piagetiana, o resultado não foi o esperado. Segundo Araújo (2003):
Esse ambiente é logo associado a experiências em que o resultado foi a indisciplina, o desrespeito ao professor, ou a salas de aula nas quais o aluno só vai para brincar e não aprende nada.
A maioria das experiências que tentaram romper com sistemas autoritários fracassaram, e continuam fracassando, porque o que normalmente se vê é o quadro caótico acima (p. 107).
Notemos que a realidade empírica da escola, ao contrário da hipótese teórica apresentada por Cury (2017) e pelo próprio Araújo (2003), é de que ela é, no geral, autoritária e, sob essa condição, pouco importa o contato com a pluralidade. Por si só, não é suficiente. Não apenas isso, mas as poucas tentativas de recriar o ambiente escolar fracassaram. Na avaliação de Araújo (2003), fracassaram não porque a proposta em si fosse ruim, mas porque teria sido mal executada. Sua pesquisa consistia em testar a hipótese segundo a qual, sob as condições adequadas, a proposta piagetiana para a escola funcionaria. Concedamos isso ao autor, as suas palavras ainda soam como um diagnóstico muito negativo da escola real. Mais uma vez, em suas palavras:
A aplicabilidade dessas ideias dentro das escolas é constantemente questionada por professores, diretores, e supervisores, que acreditam ser isso mera teoria. A experiência mostra que, apesar de difícil, é possível implantar esse tipo de ambiente cooperativo dentro de nossas escolas, e pelo fato de um número significativo de educadores não acreditar nesses pressupostos educacionais, com o apoio de muitos pais, isso não significa que eles estejam certos. Esse é um dos papéis da ciência, dentro do contexto escolar, investigar...
A maior dificuldade encontrada para realizar a pesquisa, como era de se esperar, foi encontrar uma sala de aula que estivesse de acordo com o que foi definido como um “ambiente escolar cooperativo” (p. 109).
Talvez seja possível dizer que essa avaliação inferida das percepções de Araújo (2003) não refletem um diagnóstico confiável do ensino escolar para essa questão. Mas o que poderia? É notória a descrença dos próprios educadores quanto à implementação dos procedimentos ativos em ambiente escolar. Além disso, pesquisadores do desenvolvimento moral avaliam negativamente os esforços, feitos no Brasil, na busca pelo ambiente escolar adequado à formação moral dos educandos. A conclusão a que chegam é que “encontrar formas didáticas de formação moral e ética não é uma preocupação da educação” (La Taille, Souza & Vizioli, 2004, p. 103). Analisando a questão por outro ângulo, podemos lembrar que as poucas pesquisas realizadas no Brasil, cuja intenção era medir o nível de desenvolvimento moral dos jovens, revela que a promoção do pensamento autônomo e a plena maturidade moral não vem sendo alcançada a contento. Rique e cols. (2013) mostraram que as pesquisas realizadas revelam a predominância de uma moralidade convencional, isto é, de viés mais heteronômico e presa à ideia de legalidade, o que significa níveis apenas medianos de abstração pelos quais se raciocina moralmente. Essas pesquisas foram conduzidas, principalmente, com jovens em ambiente universitário, em nível de graduação e pós-graduação, isto é, quando já haviam completado o período de sua escolarização.
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Podemos concluir, quanto às premissas de Cury (2017), que, por um lado, em uma dimensão hipotética, não se verificam as limitações apontadas para a prática de homeschooling. Por outro lado, em uma dimensão empírica, a escola não tem alcançado os resultados que deveria alcançar para ser apresentada como lugar privilegiado para a formação moral dos educandos, onde contemplaríamos “relações maduras de reciprocidade e de reconhecimento do outro como igual e diferente” (Cury, 2017, p. 116), isto é, para a sua socialização em termos piagetianos. Resta uma discussão, se é possível, dos resultados empíricos da prática de educação domiciliar. Antes disso, algumas outras considerações em um plano ainda conceitual são necessárias e esclarecedoras.
As referências de Cury (2006, 2017) não se restringem à teoria piagetiana. Na verdade, o conceito de socialização de que ele se serve parece ser, no mínimo, eclético. Ele também apresenta o conceito sob um enfoque mais sociológico, e nisso o seu artigo (Cury, 2006) é flagrantemente contraditório. Ele apresenta a socialização desde uma perspectiva interacionista, a qual implica a ideia de que a socialização é sempre e necessariamente incompleta, citando diretamente Mollo-Bouvier (2006), socióloga que apresenta este conceito em meio a uma discussão desde a sociologia da infância. Note-se que, muito embora com estas referências, Cury (2006) apresenta a socialização como uma “conquista nunca alcançada” (p. 667), critica a prática de homeschooling por não oferecer condições para uma “socialização plena” (p. 671). Para que não haja dúvida de que se trata mesmo de um ilogismo crasso, a autora cuja citação direta consta no texto de Cury (2006), no mesmo parágrafo citado adverte que “a denúncia de uma má socialização acarreta juízos estigmatizantes ou atividades reparadoras e impede que se considere a socialização um processo contínuo” (Mollo-Bouvier, 2006, p. 393). O que se diz aqui, algo não percebido por Cury (2006, 2017), é que a acusação de socialização insuficiente, defeituosa ou coisa semelhante, na verdade, revela uma incompreensão da natureza deste fenômeno, tal como percebido pela escola interacionista.
Os estigmas previstos por Mollo-Bouvier (2006) como efeito da incompreensão do fenômeno da socialização se podem verificar no texto de Cury (2006). Ele afirma que “a família não dá conta das inúmeras formas de vivência de que todo cidadão participa e há de participar para além dessa primeira socialização” (p. 670). Em primeiro lugar, não há nada na abordagem de Peter Berger – que ele também cita neste artigo – ou Mollo-Bouvier que justifique essa ideia, segundo a qual a família é insuficiente por natureza. Além disso, Cury parece assumir, sem nada que o justifique, que o homeschooling está desligado de qualquer forma de convívio fora da família. Não há família estendida, redes de amigos, bairro, igreja, associações de pais homeschoolers etc. Além disso, não identifica processos de socialização que não envolvam a interação face-a-face, ainda que os sociólogos contemporâneos tenham reconhecido a importância e o impacto de artefatos midiáticos, tais como livros, revistas, televisão, internet etc., e instituições tais como o sistema monetário, as práticas de saúde coletiva etc. Sem perceber que a citação corrói o seu argumento, ele ainda cita Peter Berger (1973, citado por Cury, 2006):
A socialização secundária é qualquer processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade (p. 671).
Isto implica, muito simplesmente, que a escola é uma instituição, entre outras, que opera socialização secundária. Nela, nada de incontornável para a inserção de um sujeito em outros mundos institucionais, nem nos mundos de inserção profissional, nem nos mundos de associação recreativa etc. E como se não bastasse, Berger é claro quanto a isto: a criança acessa os tais submundos institucionais depois de socializada em nível primário, com marcas indeléveis para sua visão de mundo!
É preciso retomar algumas críticas feitas por Mollo-Bouvier (2006), as quais incidem sobre a perspectiva de Cury (2006) e que são por ele ignoradas. Ela critica o fato de que a segmentação das idades infantis, e sua ritualização em processos institucionais de socialização intencional, cria uma série de exigências estranhas à ideia da criança como sujeito pleno de direitos. Transcrevo a citação completa:
Cada idade, cada tempo, cada lugar, cada atividade da criança cria instituições específicas. Esta é mais uma oportunidade de insistir sobre a dimensão intencional de uma socialização que ocorre segundo um percurso institucional ritualizado e que obedece a uma dupla série de exigências; exigências sociais que ajeitam a vida da criança em função da dos adultos e das necessidades do trabalho. Sem dúvida, deve-se acrescentar a essa perspectiva a dimensão econômica da ampliação desta rede institucional: trata-se, como disse Chamboredon, de um mercado aberto à profissionalização. Esses objetivos, cuja análise diz respeito à sociologia do trabalho e da economia, são geralmente cuidadosamente ignorados pelos sociólogos e ocultados pelos ‘beneficiários’ adultos deste mercado sob uma explicação de ordem psicológica que salienta as necessidades da criança: o atendimento, o desenvolvimento e o desabrochar desta parecem justificar por si que instituições se encarreguem da vida e da socialização das crianças (p. 396).
Aqui, a crítica é que sob o manto da proteção do interesse da sociedade e até mesmo do melhor interesse da própria criança, se esquece a criança como um ente de subjetividade. Ela é objetificada e manejada como um recurso social e econômico. Eis como Mollo-Bouvier (2006) enxerga o desenvolvimento da obrigatoriedade da escolarização das crianças:
O advento da escolaridade obrigatória coincidiu com o desenvolvimento de uma psicologia orientada pela preocupação com uma observação científica da criança, que fixava as diferenças autorizadas em relação a uma normalidade tanto intelectual como social (p. 398).
Isso contraria frontalmente a concepção idealizada de Cury (2006, 2017), para quem a instituição escolar valoriza e tira proveito da pluralidade e diversidade humana que abriga. Mollo-Bouvier (2006) parece concluir que a finalidade que a escola cumpre é, em alguma medida, normalizar e padronizar, isto significa eliminar diferenças e extinguir pluralidade. Aliás, esta é uma das teses de seu artigo, de que a recente transformação dos modos de socialização das crianças (este é o título do artigo) promove uma captura perversa da infância por instituições que ritualizam a infância, expropriam liberdade, espontaneidade e diferença.
Guitían (2015) identifica uma diferença interessante entre o conceito de socialização que ocorre no discurso dos pais educadores, em defesa de sua própria escolha, e o conceito de juízes que decidem quanto a essas questões. Geralmente, os pais entendem a crítica de falta de socialização apenas como isolamento das crianças, ao que respondem com registros de uma rotina de frequência das crianças educadas em casa a espaços educativos (aulas de idiomas, de música, museus, bibliotecas etc.) e recreativos diversos (parques públicos, excursões etc.). Frequentemente, juízes e outros agentes da justiça entendem a socialização como uma exposição sistemática e eficaz a valores sociais difundidos, especificamente, valores republicanos. No entanto, como vemos, a ideia de que crianças educadas em casa estariam isoladas do resto do mundo faz parte do estigma de juristas quanto aos homeschoolers. Pois é isso que se pode notar nos preconceitos revelados, por exemplo, em Cury (2017). Além do que já se mostrou, Cury (2017, p.117) ainda escreveu que “a escola é um lugar de convívio com o Outro: o negro, o pardo, o não crente, o pobre, o diferente, enfim”. Segundo ele, negros, pardos, não crentes e pobres não são apenas “o Outro” das crianças homeschoolers, mas são tipos humanos de quem as crianças educadas em casa estariam isoladas. Ao mesmo tempo em que Guitían (2015) reconhece à escola a virtude de oferecer essa oportunidade, também lembra que mesmo assim, a escola não oferece garantias de cumprir esse papel sempre. Obviamente, também precisamos lembrar que, para o caso em que as crianças educadas em casa não sejam elas mesmas negras, pardas, não crentes ou pobres (não é esse o caso, pois a distribuição demográfica dos homeschoolers inclui essas populações), há outros espaços, inclusive institucionalmente estruturados, em que poderão interagir com essas diferenças.
Na verdade, as objeções ao homeschooling no Brasil com base em considerações sobre socialização, como bem notou Barbosa (2016), precisam ser revisadas em seus pressupostos. Não encontram fundamento teórico ou empírico em pesquisas internacionais tampouco nas incipientes pesquisas nacionais. Mesmo críticos como Brewer e Lubienski (2017) centram suas objeções à suposta orientação individualista da prática de homeschooling, em vez de denunciá-la como uma socialização defeituosa. As pesquisas empíricas acerca da educação doméstica foram diversas vezes resenhadas e, mais recentemente, foram revisadas em artigo de Gaither (2017) e de Ray (2017) para o dossiê já referido. Ainda que não endossemos, por causa das objeções de vício e viés, os resultados mais lisonjeiros à educação doméstica, tais como apresentados por Ray (2017), os resultados mais confiáveis e consistentes, tais como apresentados por Gaither (2017), não chegam a desqualificar o homeschooling. Alguns desses resultados foram obtidos em pesquisas que se esforçaram por operacionalizar conceitos abstratos como a socialização e apontam dados curiosos e instigantes.
Um perfil interessante dos sujeitos educados em casa nos Estados Unidos foi traçado por Gaither (2017). Embora em sua maioria brancos, há entre eles uma população bastante diversa, ao menos em um terço de sua proporção. Inclusive, somos apresentados à interessante presença de pessoas negras e pobres praticantes de homeschooling, as quais relatam como motivo para sua escolha coisas como (a) proteção dos filhos contra racismo na escola, (b) proteção contra uma cultura de baixas expectativas para o desempenho de seus filhos, (c) proteção contra diagnósticos equivocados de necessidades especiais. Muitos pais afrodescendentes e homeschoolers, nessas pesquisas, alegam que, em casa, podem oferecer educação afrocêntrica e se ligar, de maneira mais proveitosa, a famílias brancas cuja educação é orientada para realizações, algo tido pelas famílias afrodescendentes como sendo saudável. Os estudos que apresentavam resultados relacionados aos traços de personalidade de jovens que haviam feito educação doméstica mostraram escores de abertura, conformismo e conscienciosidade um pouco mais elevados que a média da população, assim como uma propensão um pouco maior para assumir posições de liderança. As pesquisas também realizadas com egressos de educação doméstica que buscam educação superior em colleges norte-americanas não encontram mais dificuldades para uma transição emocional ou social do que estudantes egressos de escolas públicas ou privadas. Outros estudos mostram que, com relação à vida religiosa, o fato de terem sido educados em casa não foi uma variável relevante, mas a religiosidade dos pais sim. Nada nesses resultados sugere qualquer comprometimento da competência para a vida cívica dos jovens educados em casa. Quando Ray (2017) comenta, especificamente, o que ele chama de “a questão S”, questão sobre a socialização, ele afirma que:
Numerosos estudos, empregando vários construtos psicológicos e medidas [para avaliar a socialização] mostram que as crianças educadas em casa se desenvolvem ao menos tão bem quanto, e muitas vezes até melhor que aquelas que frequentam escolas regulares (p. 90).
Tudo isso sugere a conclusão segundo a qual, no mínimo, os estudos empíricos não desqualificam a prática de homeschooling, sequer quanto aos possíveis resultados das condições de socialização que oferece. Por essa razão, as premissas segundo as quais (1) as condições de socialização oferecidas por pais homeschoolers seriam inadequadas, em princípio e (2) as condições oferecidas pelas escolas seriam, em princípio, privilegiadas, são ambas equivocadas. De maneira mais clara, não se pode acusar a prática de homeschooling de restringir o acesso da criança à socialização com base em evidência científica, pois essa evidência não existe. Mais importante que isso, essa acusação é, na verdade, produto da incompreensão do próprio fenômeno da socialização.
Obviamente, podemos supor que há escolas onde as condições para a formação moral dos educandos são bem estruturadas e, por isso, oferecem boas condições educativas. Contudo, não há razão para crer que as escolas estariam em melhor condições de operar a socialização de nossas crianças, em qualquer sentido que se dê ao termo. Por outro lado, as práticas de homeschooling também precisam ser qualificadas com vistas a afastar as ressalvas e objeções de que frequentemente são alvo. Mas, principalmente, para que elas ofereçam às nossas crianças tudo aquilo que elas efetivamente podem oferecer.
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Texto: Dr. Hugo Matias, doutor em Psicologia pela UnB; professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; pai educador; e Taiane da Silva Conceição, graduanda em Direito pela FACEMP – Faculdade de Ciências e Empreendedorismo.
Revisão do Texto: Emerson Almeida - Equipe Educalar
Fonte Imagem: Canva/Educalar
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