Filholatria: Um deus chamado filhos e seu culto chamado homeschooling
Vivemos dias peculiares, mas a idolatria humana permanece inalterada em sua essência. O que observamos é um refinamento e diversificação das formas de manifestar nossa rebeldia contra Deus.
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Por Val Martins
Vivemos dias peculiares, mas a idolatria humana permanece inalterada em sua essência. O que observamos é um refinamento e diversificação das formas de manifestar nossa rebeldia contra Deus. Com o passar do tempo, aperfeiçoamos nossa capacidade de transformar potenciais bênçãos e oportunidades de glorificar ao Senhor em ocasiões para o pecado.
Recentemente li que uma mãe norte-americana postou em suas redes sociais referindo-se às dores e os sofrimentos do corpo no pós parto: "As mães no mundo atual estão competindo por um troféu que não existe". Embora não seja esse o nosso assunto, a frase que essa mãe publicou traduz um pouco do que gostaria de dizer a algumas mães que estão iniciando a jornada materna e talvez dissesse isso com minhas próprias palavras: maternidade não é um troféu. Gostaria de ter sido eu a inventar ou cunhar esse termo, mas o fato é que ele existe e há uma forte disseminação dessa ideia nas redes, grupos e mídias sociais, onde mulheres se unem para se fortalecer no processo da maternidade perfeita de filhos perfeitos e incontaminados de glúten, lactose e virose (contém ironia). O que há por trás desses comportamentos de “mamães troféus” é a ideia de que os filhos são alvo de sua total devoção e a maternidade um troféu a ser mostrado nas redes sociais que começa pelos ensaios fotográficos de exposição obrigatória de sua “não esterilidade” e segue pela mensal enxurrada de imagens que consagram os “mesvessários”, regadas a muita criatividade temática. Essas mães costumam realizar exaustivos debates sobre sobre amamentação, vacinas, faldas e desfralda, introdução alimentar, alergias, viroses e afins, em que, muitas delas são especialistas por formação em vídeos do Youtube, ou pior, Reels do Instagram.
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O que se segue nesse processo de “adoração” à maternidade é a escolha da forma de ensino dos pequenos deuses, em grande maioria optam pelo homeschooling, por ser o caminho mais favorável e quase que alternativa única desse processo de proteção e porque não dizer, de ”devoção” aos filhos. Pareço estar um tanto incisiva ao dizer isso, uma vez que o homeschooling e todo esse processo poderia ser apenas parte do portfólio de atividades de uma família piedosa que deseja proteger seus filhos de um contexto mundano pernicioso. Porém, está claro que o assunto aqui não é ter ou não os filhos estudando em casa. Não se trata de quantas festas mensais de comemoração pelo nascimento do filho se faz, mas sim, sobre o que poderá nos levar a tudo isso, a idolatria. Ou melhor caracterizando, a filholatria.
A filholatria é reconhecida como um fenômeno sociológico característica da geração cujo os filhos estão nascendo neste momento. São os filhos da denominada geração Y e também alguns da geração Z. Esses indivíduos, geração Y e Z trazem em sua formação a influência da geração Baby Boomers, filhos de um contexto de reconstrução do mundo pós Segunda Guerra. Estes, dedicaram-se à busca pela paz e realização pessoal e também se dedicaram a criar seus filhos, que são a geração X, tentando oferecer-lhes o que há de melhor do mundo reconstruído e fazendo-os acreditar que eram mesmo especiais. Por sua vez, a geração X criou seus filhos que agora são geração Y e Z, com muito mais dedicação, proteção e suprimento, fazendo-os sentirem-se “muito especiais”. Essas crianças “muito especiais”, crianças criadas com iogurte “danoninho” e que aprenderam a andar de bicicleta com cotoveleira e capacete e jamais foram à pé para a escola. E são estes que agora estão criando seus filhos influenciados por todo esse sentimento de especialidade e proteção, só poderiam gerar filhos “ultra-especiais”.
Há ainda outro fator determinante na maneira como essa geração vê seus filhos, é o fato do conceito de família, moradia e número de filhos terem se modificado ao longo das últimas décadas. As famílias hodiernas decidem ter um ou no máximo dois filhos. E como tudo que é único pode assumir um lugar de muito especial, temos aqui mais meio caminho andado para a filholatria. Ao que parece, foi formatado na maior parte dos indivíduos que estão gerando filhos agora, que, por terem eles crescido acreditando serem muito especiais, seus filhos passam a ser “especiais plus”. E é assim que os filhos tornam-se um fim em si e não um meio de cumprir o propósito de glorificar a Deus neste mundo.
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Vendo isso tudo sob a perspectiva teológica, entendemos que a filholatria é apenas um reflexo da idolatria intrínseca à nossa natureza humana. Independentemente da fé que professamos, a evidência da idolatria em nossos corações é pujante. Desde que o homem, consciente e voluntariamente afastou-se do Criador, iniciou-se uma busca pelo divino, que se transformou em um processo de construção de falsos deuses e estabelecimentos de falsos cultos na tentativa de se reconectar com o Criador. Nascemos com a eternidade em nosso coração (Ec.3.11) e é próprio da nossa natureza a necessidade do sagrado, do divino. Calvino em seus escritos chamou de O sensus divinitatis a capacidade natural dos seres humanos de perceber Deus, porém, como o pecado parte da nossa natureza, não somos capazes de nos inclinar devidamente diante do Deus verdadeiro e passamos a erguer deuses diversos para atender à nossa necessidade do sagrado e é por essa razão que facilmente podemos tornar o amor que é devido aos nossos filhos numa espécie de idolatria. E aquilo que poderia ser uma forma de serviço de amor e obediência a Deus, torna-se um culto de idolatria aos falsos deuses por nós erigidos.
É assim que a experiência de homeschooling pode ser uma forma de normatizar a nossa filholatria e isso pode pode ser evidenciado de acordo com os pressupostos que possuímos sobre Deus, sobre nossos filhos e sobre a educação deles.
Por melhor que seja a nossa teologia, é natural irmos nos afastando da compreensão prática de quem Deus é e em nosso dia a dia. Vamos assumindo uma postura de “ajudantes de Deus na sua Providência”, como se Deus precisasse muito do nosso trabalho para conseguir manter as coisas em ordem no Universo. Então, saímos da posição em que Deus é o soberano provedor da existência humana e nos posicionamos com a arrogância de “eu estou no controle”. O homeschooling, quando não é bem intencionado ou direcionado, poderá ser um meio de serviço à idolatria do nosso coração e passa a ser não falso culto, deixando de ser um meio de eu realizar o meu trabalho para Deus e torna-se apenas um meio de o meu filho não estar sob o “controle do Estado” ou apenas uma forma de dizer: “eu estou no controle agora”.
Nesse sentido, o que quero dizer é que isso pode ser um reflexo da nossa má compreensão acerca de quem Deus é e de sua soberania no governo de todas as coisas. Algo não está bem acerca da nossa compreensão sobre Deus, quando no centro da nossa existência estão nossos filhos e o homeschooling passa a ser uma forma de regência do nosso próprio universo. Deus não é reconhecido como o soberano provedor em que o homeschooling está a serviço de sua glória em nossa família.
Essa má compreensão também afeta a visão que temos sobre nossos filhos. É natural que todos os pais querem proteger seus filhos de todos os males possíveis, pelo menos é isso que se espera. Às vezes, esse senso de proteção nos leva a querer proteger nossos filhos das outras crianças, para não se contaminarem, desde as viroses comuns na infância, até dos males comportamentais da adolescência. Em nossa compreensão, na maior parte das vezes, nossos filhos são sempre vítimas, os filhos dos outros são o problema. Quando eu me tornei mãe homeschooler, é óbvio que também pensava assim sobre minhas filhas. Uma das minhas principais motivações em ensiná-las em casa era protegê-las dos males dos “outros” na escola. Pensei assim até descobrir que elas eram “os outros”. Essa era a minha má compreensão sobre minhas filhas: eu não tinha noção do quão pecadoras elas eram e eu acreditei que, através do homeschooling poderia protegê-las do mal. Eu não me lembrei que o mal também estava nelas e só me dei conta disso quando vi minhas filhas precisarem ser resgatadas pela graça de Cristo, mesmo estando dentro das quatro paredes da minha casa.
Um terceiro pressuposto equivocado nesse contexto de filholatria é sobre educação. Muitas vezes confundimos educação com adestramento. Vemos como resultado do ensino a “salvação” para nossos filhos não serem iguais às outras crianças. Conhecendo um pouco sobre a abordagem do Trivium/Quadrivium, observamos que o processo de ensino e aprendizagem caminha para a formação de um ser pensante, autônomo de suas ideias, com a capacidade de defender suas crenças, argumentar e contra-argumentar com conhecimento fundamentado e retórica. Em nada se parece com um adestramento de ideias reproduzidas automaticamente e sem sentido. Quando não há uma correta compreensão da educação dos filhos, como uma ferramenta que deverá levar nossos filhos defender sua fé e glorificar a Deus, esta pode torna-se apenas um fim midiático, um parâmetro de demonstração de piedade ou até mesmo uma demonstração de “o quanto amo o meu filho” ou “como eles são inteligentes”. A educação não é um meio redentivo, Cristo sim. Quando a educação se torna um fim em si e deixa de ser uma ferramenta de serviço a Deus, cumpre um papel diferente de criar indivíduos autônomos para Deus e torna-se um propósito falar, ser e fazer apenas o que eu acredito ser bonito, interessante. Com isso o ensino de nossos filhos pode vir a ser um meio de projeção da nossa idolatria, onde o objetivo é mostrar que nossos filhos sabem mais que as outras crianças que vão à escola.
O homeschooling não deve ser sobre nós, ou sobre nossos filhos, ou sobre a piedade de nossa família. O homeschooling deve ser sobre Deus, sobre obedecer ao seu mandado e sobre a projeção de Sua glória neste mundo. A idolatria na sua forma mais simples de compreensão é tirar o foco do Deus verdadeiro e dar a outro o lugar que pertence a Ele. No fundo, a idolatria, além de ser uma ofensa contra Deus é um ato de injustiça com a outra pessoa idolatrada. Idolatrar uma pessoa é uma forma de não amá-la, pois, a partir do momento que eu idolatro alguém eu estou criando sobre essa pessoa uma expectativa de divindade, o que é impossível a qualquer ser humano. Idolatria é tentar fazer tudo certo com o interior errado.
Nossos filhos são importantes, mas não devem ser o centro de tudo. Quando os filhos estão no centro, a rotina da casa e de estudo torna-se em serviço aos interesses e vontades da criança e de sua projeção. Assim, o serviço de adoração a Deus e até mesmo a vida em comunidade cristã ficam suprimidas. Nem mesmo a observação do dia do Senhor poderá sobreviver à uma rotina onde o filho é o centro. A filholatria pode comprometer rotinas simples que poderiam ser abençoados meios de graça. Como, por exemplo, comunhão com outras famílias educadoras. Isso é uma bênção, mas não pode ser mais importante que a vida comum na comunidade cristã. Quando os filhos tornam-se o centro de nossas conquistas, a comunhão com famílias do pacto podem facilmente ser substituídas por convívios com outras famílias homeschooling, ou por encontros sobre educação, tornando a bênção do homeschooling uma religião a ser seguida.
Amar nossos filhos é devido, mas a medida desse amor não pode sobrepujar nosso amor a Deus e não pode suprimir nossa devoção a Ele. Nossos filhos não podem ser instrumento de pecado contra a Lei de Deus, nossos filhos não podem ser adorados e nosso serviço de cuidado e proteção a eles não podem ser nosso culto ou sentido de vida. A idolatria de filhos é um sentimento disfuncional para nós, pois nosso coração não foi criado para a idolatria e sim para Deus.
A idolatria dos filhos prejudica a nossa vida espiritual, nossa vida na comunidade cristã, e poderá ainda afetar nosso relacionamento conjugal. Há muitas situações onde cônjuges são postos de lado em nome do cuidado dos filhos, gerando uma disfunção de autoridade e desfiguração da família. Essa inversão de papéis de autoridade no lar permite que as crianças estejam no controle da casa, dos horários, das rotinas, dos interesses e gostos da família. É comum vermos lares onde as crianças que escolhem o que a família vai assistir, qual programa de passeio, o que vai comer, quando vai comer ou o que vai vestir. Sei que isso pode soar estranho, pois o tempo que vivemos nos mostra que isso parece ser o correto. Chegamos ao extremo em que mães não respondem à santa convocação de culto dominical pois aquela é a hora da soneca do seu filho. É assim que muitos pais, devotos à idolatria de seus filhos, tornam-se submissos de suas vontades e reféns de suas “necessidades”. Isso é o resultado do filhocentrismo, filho como fonte de felicidade, realização e amor acima de tudo e de todos.
Como mães cristãs devemos estar cientes da nossa missão de eternidade. É preciso aprender a fazer coisas temporais com mente centrada nas coisas eternas. Nossos filhos pertencem a Deus e são meios de graça usados pelo Senhor para nos forjar para a eternidade.
A observação da Lei do Senhor, a Santa convocação, não podem ser suprimidas pelos interesses, vontades ou mesmo primazia da educação de nossos filhos. As prioridades da educação de nossos filhos não devem sobrepujar a vida cristã e seus encargos. O homeschooling não é um fim, a rotina não é um fim, a glória de Deus é o fim. Quando o Homeschooling é superestimado, torna-se um serviço religioso e não um serviço a Deus.
Como mães cristãs, não podemos perder nosso foco e confiança em Deus, dedicando nossa fé mais ao processo do que em Sua providência. Precisamos assumir a mentalidade do discipulado geracional: nós não estamos formando acadêmicos, doutores, engenheiros. Estamos formando discípulos de Jesus que poderão vir a ser doutores, engenheiros a serviço do Reino. O princípio de Dt.6.6 que diz: “E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração; E as ensinarás a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te e levantando-te.”, deve reger o nosso currículo, nossa rotina e nossa vida familiar. Nisto sim deve estar a nossa maior demanda de energia: ensinar nossos filhos a ser imagem de Cristo ao invés de buscar imagem pautada nos padrões externos do mundo.
Se a nossa meta é fazer discípulos e não doutores, estarmos inseridos de forma ativa na comunidade do pacto será de maior relevância que qualquer outra atividade social que possamos fazer. Se considerarmos o importante papel que a igreja assume sobre a formação espiritual de nossos filhos, nós deveríamos assumir maior compromisso com nossa comunidade local de culto a Deus do que com qualquer outra comunidade educadora. No batismo de nossos filhos, a igreja faz um juramento de ajudar os pais na formação espiritual da criança que está a ser batizada, mas para que isso possa acontecer, precisamos manter nossos filhos inseridos no contexto da vida da igreja. A melhor proteção para nossos filhos é mantê-los na Lei do Senhor, com discipulado ativo, vida com a família do pacto e rotina de vida cristã.
Texto: Val Martins - Equipe Educalar
Revisão do Texto: Emerson Almeida - Equipe Educalar
Fonte Imagem: Canva/Educalar
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