Entendendo a Estrutura dos Clubes de Leitura
Por Hugo Matias 26 de abril de 2023
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História
Podemos dizer que os clubes de leitura são coisa muito antiga, a depender do modo como venhamos a definir isso. Grupos de pessoas reunidas para ler juntas, discutir suas impressões, aprimorar, pela discussão, a interpretação de textos difíceis, até mesmo fruir o prazer destas leituras (principalmente), tudo isso tem séculos, até milênios. Numa de suas cartas, Plínio, o Jovem, faz menção à leitura em voz alta, uma amenidade durante refeições em família e entre amigos, com função de instruir e divertir. Antes disso, pinturas áticas em vasos do século V a.C. representam situações de leituras com função de entreter e em meio a conversações. Mais modernamente, essa prática deixou de ser exclusiva das elites letradas (com a alfabetização em massa e popularização da posse de livros) e passou a cumprir várias funções sociais, dentre as quais as que mesclam interesses educacionais e recreativos. Podemos falar em grupos de trabalhadores do século XIX, que pagavam a um leitor para lhes distrair de seu esforço físico monótono e exaustivo com leituras que iam de Alexandre Dumas às Meditações de Marco Aurélio, às quais, depois de anos de escuta, eles eram capazes de recitar inteiras. E antes disso, desde os séculos XVI e XVII, as leituras em pequenas associações de amigos que se reuniam para comentar uma peça literária enquanto também cantavam e participavam de jogos e outras cortesias. Parece-me que é assim que surgem as agremiações a que chamamos clubes de leitura.
Sua natureza e seu valor
Assim, já temos a sua natureza: trata-se de um grupo de pessoas que cultiva interesse em comum pela leitura, que coopera nesse hábito. A ideia de “cultivar um interesse” é fundamental, já que é nisso que se distingue o clube de um seminário, de uma lição (a instituição da lectio, na instrução escolástica) e outras instituições mais sisudas e formais. A dimensão gozosa da leitura e o contexto do companheirismo são sim essenciais a esses clubes, como a tantos tipos de outros. Não por isso se excluam outros frutos, pois essa colaboração para a leitura também pode e deve proporcionar instrução, enriquecimento intelectual e a iluminação dos textos que se queira ler.
O valor desses clubes pode, na verdade, ser medido pelos muitos benefícios que oferecem. O maior deles é justamente aquilo que lhe é essencial, a saber, a companhia para a leitura. Só isso não é pouca coisa. Este pacote inclui: o mútuo reconhecimento de uma paixão pela literatura; com isso, a confirmação do valor e da virtude nesse afeto; também o ganho de estímulo ao esforço de leitura e de seu máximo aproveitamento; o conhecimento partilhado.
Há muitas outras vantagens a se contabilizar, por exemplo, relacionadas às competências de leitura, pois ela será certamente enriquecida pela comparação entre perspectivas diferentes. Isso nos dá acesso não somente a pontos de vistas diferentes, mas à capacidade de pensar dialeticamente, ou seja, pensar muitas perspectivas simultaneamente. Também seremos levados a lapidar nossas hipóteses de leitura com mais cuidado e zelo, à medida que nos habituamos à crítica, à medida que enfrentamos objeções, claro, em ambiente de camaradagem. Como consequência, aprimoramos nossa própria arte exegética e hermenêutica. Outro importante efeito colateral de toda essa experiência é que somos treinados nas virtudes do diálogo racional ao qual estamos constantemente expostos nos tais clubes, e desenvolvemos capacidade argumentativa. Não menos importante: temos a oportunidade para apurar nossa sensibilidade estética, elevando e sofisticando nosso gosto da leitura.
Modalidades
Muito embora tenha mencionado a palavra literatura e ela esteja frequentemente associada a um conjunto bem restrito de gêneros textuais (como as formas de poesia, de escrita de ficção etc.), o escopo de possibilidades de leitura de interesse em nossos clubes é muito amplo. Ora, tantos quantos são os tipos de interesse podem ser os tipos de clubes de leitura. Caso o interesse predominante seja pela investigação das obras lidas, isso terá implicações para o funcionamento do grupo. A escolha das obras sofrerá o efeito da fome por conhecimento, o qual se orienta frequentemente para a novidade. A dinâmica de discussão assumirá feições próprias também, de escrutínio, com certeza. O grupo terá metas, sedimentará conclusões. Talvez a investigação resulte em apreciação formal do valor da obra, talvez resulte em sua classificação e assim por diante.
Por outro lado, o propósito para a reunião pode ser puramente estético. O tom será bem outro. Imagino que o processo de escolha deverá prover de alimento um outro tipo de apetite bem diferente, mais ávido dos prazeres inerentes à própria leitura. Isso pode significar a dispensa de novidade, pois obras já conhecidas podem ser mais seguras na fruição que proporcionam. Os debates darão lugar ao relato da experiência de leitura. Talvez sequer isso, pois a própria leitura terá proeminência, de modo que o clube pode ser somente um encontro para a leitura em voz alta, regada com chás, vinhos ou o que se queira, tudo o que possa se harmonizar à degustação de um livro.
As modalidades de clube de leitura podem ainda ser classificadas mais simplesmente: o interesse pode convergir para obras de filosofia, de poesia, de romance, teatro, leitura bíblica. Pode ter um foco ainda mais restrito, como a filosofia medieval, a poesia lírica, o romance realista, teatro de tragédia grega, a leitura devocional, pode se concentrar em autores específicos etc. Por fim, o clube pode até ser eclético.
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Funcionamento
Tão variadas quanto as modalidades listadas podem ser as formas de seu funcionamento. Essas formas não são fixas, mas as suas regularidades estão relacionadas com as condições que acolhem os clubes de leitura. Parece-me que o mais comum é que alguém hospede o clube em sua casa e isso faria justiça às tradições mais longínquas de que temos notícia. O ambiente doméstico é perfeito para o clima de intimidade e descontração desejáveis. É claro que esta casa pode ser uma sede fixa ou pode ser itinerante, num rodízio em que os seus muitos membros tomam parte. A conveniência o determinará. Há clubes que se reúnem em ambiente de trabalho, em cafés, bistrôs e adjacências; há clubes instalados em espaços de bibliotecas, livraria ou sebos; mais recentemente, há clubes virtuais. A frequência das reuniões está associada à disponibilidade do espaço escolhido, assim como o tempo de duração. Nenhuma regra senão o bom senso: (a) há que ponderar a frequência e duração que o espaço comporta (o anfitrião suportará oferecer mais que duas horas de hospitalidade?); (b) a avidez dos sócios pela troca de ideias também terá um papel na determinação dos tempos, pois as reuniões não poderão ser estendidas muito além do tempo em que se esgota a discussão, e não deverão ser mais curtas que o ânimo debatedores. Do mesmo modo, com a medida de tempo que todos terão de esperar entre um encontro e outro: longo o bastante para a leitura e digestão da obra ou do trecho selecionado, mas não tão longa que venha a dissipar a ansiedade da troca.
É, certamente, crucial para a correta dosagem dos ingredientes já mencionados, com vistas ao sucesso do clube, a questão da quantidade de seus sócios. Ela nos leva a uma consideração também necessária, eventualmente anterior. Os clubes podem ser abertos ou fechados. Os clubes fechados, de que somente participam os amigos que primeiro reconheceram e abraçaram o mútuo desejo de cooperar na leitura, juntamente com os seus eventuais convidados, esses são os mais naturais, comuns e antigos. O seu fundamento é a familiaridade, a afinidade percebida, e isso cabe na intimidade de um clube. Outrossim, a afinidade garante uma certa “dinâmica” ao grupo, a qual poderia ser perturbada por estranhos. Não vejo como esses clubes poderiam sobreviver com menos do que três pessoas (uma intuição difícil de justificar, eu admito). Já um número máximo, além das condições de lugar, varia com a capacidade de manejo dessa dinâmica referida. Quando se tem num ambiente dois focos de conversação, se tem dois grupos, dois clubes. O mínimo que a dinâmica precisa garantir é a unidade do clube, por meio de seu confinamento a um foco de conversação. Ao mesmo tempo, que todos os que quiserem contribuir para essa conversação, que o possam fazer a contento. Minha impressão é que o número máximo de pessoas está relacionado com a capacidade de foco. Por outro lado, talvez eu esteja impondo meu próprio ideal de dinâmica grupal. Há grupos de pessoas que, em reunião, mantêm suas “panelinhas” sem que isso perturbe a todos e do que tiram muito proveito. Os clubes abertos são aqueles dos quais as pessoas entram e saem sem maiores empecilhos. Faz mais sentido que esses clubes ocorram em condições institucionais bem específicas, como clubes em bibliotecas ou livrarias, em universidades etc. Tenho a impressão de que eles atendem às demandas de um público mais flutuante. Também penso que muitos clubes online têm essa característica justamente para acolher um público assim. A conclusão a que chego é que a manutenção de um clube aberto depende de condições de espaço e tempo favoráveis, assim como de regras compatíveis.
Sim, as regras... O melhor é que as regras não sejam como leis escritas em pedra, que haja bastante flexibilidade, que sejam em número pequeno. Mesmo assim, é preciso que existam e que se lhes faça conhecer logo de início. Obviamente, a principal regra é que somente participam as pessoas que leem as obras indicadas. Não recomendo, no entanto, uma fiscalização dura. Talvez apenas que cada um traga o seu próprio exemplar da obra que se lê. Pode-se combinar que todos adquiram a mesma edição, porque isso facilita as referências a trechos que se queira comentar. Mesmo assim, a diversidade de edições, até mesmo de traduções (caso sejam uma obra traduzida), pode enriquecer a discussão. Aliás, somente com raras exceções, o clube de leitura dispensa discussões (há clubes que consistem somente na leitura por alguém de uma obra pela qual todos se interessam, mas não vejo muito disso). Sendo assim, é imprescindível que a alternância de turnos de fala seja garantida e de modo ordeiro. Há sempre o risco de que alguém muito empolgado com suas próprias ideias acabe dominando o grupo, fazendo dele sua própria plateia particular. Isso empobrece a leitura. As interrupções eventualmente atrapalham. Note a expressão “eventualmente”. Às vezes, a melhor dinâmica ocorre justamente quando o momento de debate acalorado se alimenta do arroubo, do disruptivo e da incontinência. Por isso, estabelecer tempos cronometrados para fala e vetar com mal humor qualquer interrupção pode tornar a conversação mecânica e artificial, até burocrática. O melhor é que se possa confiar na mediação de alguém que faça um bom julgamento das situações e mantenha o propósito de enriquecer a discussão com uma especial sensibilidade para as sutilezas casuísticas da intenção de não cortar o barato de ninguém. Portanto, uma regra que gostaria de apontar é: havendo a figura do mediador, que todos aceitem e confiem em seu julgamento, de modo que ele nem precise justificar as decisões que vier a tomar.
Coordenação
Segundo a proposta que fiz acima, é importantíssimo que aquele que realiza mediação saiba o que está fazendo. Este que realiza a mediação também coordena o grupo (ao menos em uma reunião). Assim, a coordenação é um encargo e mediar, uma das funções associadas. Se bem entendido o que já disse acima, as poucas regras enunciadas, e ainda bastante flexíveis, não garantirão ordem. Portanto, o coordenador de um clube de leitura não será um aplicador de leis. Os clubes de leitura são instituições bastante frágeis e isso impõe o cultivo de uma estrutura de relações que se caracteriza por formas muito tênues poder. O coordenador não exercerá influência decorrente de sua própria autoridade (se ele é o que mais “sabe” e coordena com base nisso, será uma sala de aula e não um clube), nem direção em nome de uma maioria (pois uma tensão entre maioria e minoria num clube de leitura implicará o desinteresse de uns ou até de todos). Ora, seria um erro falar desses clubes como democráticos. Se um clube envereda por este caminho, de pensar a si mesmo como uma estrutura de poder, de organizar a participação de todos e de cada um como sendo uma questão de justiça, uma questão de direito e dever, o clube terá deixado de lado o seu propósito e estará fadado ao esvaziamento de seu interesse. Tenhamos isso em mente: o fundamento da cooperação é o interesse na leitura e qualquer perda por processo (discutir governo em vez de discutir a obra) será facilmente a uma experiência enfadonha. Se o conceito de justiça se tornar estruturante das relações no grupo, a natureza humana garantirá uma maior medida de percepção de injustiça e, daí para frente, ladeira abaixo. Pensemos nisso: todos os membros do clube têm igual capacidade de esvaziar o grupo! A partir do momento em que iniciamos o clube, não queremos mais voltar a ler sozinhos e por essa razão trabalhamos para manter o grupo.
O fundamento para a atividade do mediador deverá ser a condição de um primus inter pares, um primeiro entre iguais. Esta não é uma posição de muito poder, mas uma posição de honra. Se essa condição é assumida, só existe um caminho, essa condição foi outorgada. É nos modos possíveis para a outorga dessa honra que vemos quão frágil é a questão do poder: a honra pode ser concedida por sorteio, pode ser concedida ao anfitrião que recebe o clube, pode ser concedida ao mais discreto do grupo, ao mais conciliador etc. Não é necessário que seja o mais competente em qualquer sentido. E mesmo assim, aqueles que outorgam a honra, justamente porque a concedem, podem descansar e suspender o juízo dos atos de mediação. O ideal que estou sugerindo sobre essa outorga de honra é que se conceda para confiar e não que se confie para conceder. Um voto de confiança no sentido mais próprio. Ainda segundo este ideal, o voto pode ser retirado a qualquer momento e isso deve levar a uma substituição da coordenação, o que será aceito pelo coordenador para o melhor funcionamento do clube. Poderia ser divertido e útil ao clube ritualizar a outorga da honra de coordenação assim como o eventual voto de desconfiança (melhor que esse voto, de alguma maneira, seja secreto).
O que o mediador precisa saber para que saiba o que está fazendo?
Imagine que a capacidade de alguém para a leitura competente é como água de um córrego, cujo ímpeto, pequeno ou grande, é o interesse por uma obra. Num pequeno clube de leitura temos como que um pequeno terreno onde há vários córregos, cada um correndo em sua própria direção. O que o media precisa saber é onde cavar um açude nesse terreno, no lugar preciso onde possa captar todas as águas que por ali passem, retendo essas águas para o aproveitamento do clube, como que construindo barragens bem posicionadas. Isso significa que o mediador precisará discernir a direção das possíveis contribuições dos muitos participantes e tentar captá-las nos temas para os quais elas confluem. É preciso notar que não se trata de enxergar as semelhanças entre pontos de vista. Isso poderia tornar a conversação estática. O importante é discernir o fluxo da conversação e aproveitá-lo, não o desperdiçar em nada, até que ele encha o ambiente. Esse fluxo pode se perder por causa de uma contribuição mais longa do que o necessário, enquanto outras contribuições oportunas são desviadas do fluxo central da conversação. Pode se perder por um desvio inoportuno do curso da fala, o qual deve ser devolvido com arte e graça ao tema pelo qual a conversação prospera. Eventualmente, o mediador também buscará captar águas mais distantes, fazendo provocações oportunas, escolhendo quem fala, por quanto tempo, quem comenta o quê etc. Assim, mediar bem, conduzir ou coordenar um clube do livro tem que ver com isso: ler o terreno da conversação, e fazer um açude nele.
Esse é o trabalho mais fácil de coordenação. Mais difícil é coordenar as condições da reunião, levantando entre os membros o melhor dia e horário, combinando um cafezinho de maneira a contemplar e atender os mais diferentes gostos e preferências por acepipes, supérfluos e guloseimas. Há reuniões, imagine, onde se disputam o lugar onde sentar, o que um coordenador talvez seja chamado a arbitrar! Eventualmente, será chamado a conduzir discussões laterais, sobre as circunstâncias em que se aceitam novos membros e ainda outras decisões do tipo. Um clube do livro é algo a se manter vivo e o coordenador é o principal guardião de sua saúde.
Participação
Nenhum dos membros de um clube do livro está isento de algum nível de compromisso com esta saúde. Desse modo, há também recomendações possíveis acerca de como se conduzir em um clube de leitura, isto é, sobre como participar. Para não deixar de dizer o óbvio, o início desta participação consiste na leitura da obra que organiza o clube. Contudo, não se trata de qualquer leitura, mas da melhor leitura que se puder fazer para oferecê-la a todo o grupo dos cooperadores, aqueles que também leem junto. Da sua melhor leitura, é necessário oferecer as suas melhores impressões, informações que enriqueçam a leitura, os detalhes importantes a serem destacados para apreciação geral, a melhor interpretação. Também devo lembrar de que a melhor interpretação se deve oferecer com competência e honestidade intelectual. Não faz parte do escopo destas recomendações tratar do que vem a ser uma interpretação competente. Aliás, este é um dos ganhos que alguém pode obter de sua participação em um clube do livro, aprender com outros a ler com competência.
Não oferecemos apenas essas contribuições, mas também o melhor de nossa atenção e reverência às contribuições dos outros, inclusive o reconhecimento explícito, sempre que sincero, do valor dessas contribuições. A forma mais elevada de homenagem às contribuições dos outros é levá-las a sério a ponto de que, eventualmente, se lhes contraponham as objeções de que sejam dignas, nunca para vencê-las, mas para testá-las, explorá-las, espremer-lhes o seu melhor azeite, até mesmo fazer-lhes a justiça de rejeitá-las, sempre com boa-fé e espírito de cooperação, pelo melhor da leitura.
São, portanto, três formas de participação: dois tipos de fala (a contribuição e a objeção) e um tipo de silêncio. Como já dissemos acima, a participação adequada também inclui a polidez e a confiança na moderação daquele que coordena as reuniões. O essencial é manter o coração encantado pela leitura. Com isso, nenhuma dessas recomendações será incompreensível ou inalcançável. Sem isso, não faz sentido sequer integrar uma agremiação desta natureza e será impossível tolerar as pessoas e suas estranhas alegrias nessas reuniões exóticas.
Por fim, se você assumiu um compromisso com um grupo de participar de um clube de leitura, honre-o. Se precisar se ausentar, avise. Se não tiver conseguido ler, comunique. Se tiver dificuldades, peça ajuda. O bom funcionamento de um clube de leitura depende de cada integrante que aceitou a empreitada.
Ótima Leitura!
Texto: Hugo Matias - Pai Educador.
Revisão do Texto: Bárbara Beatriz - Equipe Educalar.
Fonte Imagem: Canva/Educalar.
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